[crônicas de viagens lícitas, por Ludmila Tavares]
Deveria ter me preparado. Não sei se só ingenuidade ou uma certa esterilidade causada pela mesmice crônica de uma parcela musical. Aquela noite sem dormir enquanto me explicava para os poucos amigos insones sobre minha experiência atestavam: eu não estava pronta para o meu primeiro show do Test.
Era meu primeiro dia de aula de bateria com o Amilcar Christófaro. O peso do professor nada diz sobre minha carreira artística. Não somava pouco mais de um mês que eu havia arriscado as primeiras notas com uma baqueta. Qualquer expectativa que eu pudesse criar naquele dia já havia sido atendida.
Há quem julgue uma dose de uísque noturna um bom ansiolítico após um dia intenso. Minha abstinência etílica converte tal medicamento em shows. Era o que eu buscava. Ouvir um som antes de dormir para superar uma aula de bateria que prometia bons momentos nas semanas seguintes.
Cheguei sozinha, como assim continuei por toda noite. Entrei na Fffront, uma pequena casa de shows no bairro de Pinheiros, após saber que o famoso duo que tocava em uma Kombi na porta de grandes shows de metal iria se apresentar. Ainda não havia ouvido uma nota deles sequer. No entanto, minha motivação capitalista moveu meus olhos para a banca de produtos da banda exposta antes de começar a apresentação.
Quem me passou o número do pix foi o próprio Barata, baterista do Test e 50% do duo formado com o João que assume o microfone com uma guitarra. Barata era mais doce do que um poeta que vi recitar Lord Byron quando adolescente em um sarau de pseudo-intelectuais.
Subi para o andar do palco enquanto os músicos se aqueciam e terminavam os últimos ajustes dos instrumentos. Sentei no chão e lá fiquei até que pessoas com estilos que iam do grunge ao gótico passaram a me rodear de pé anunciando o quase início do show.
Levantei a tempo de ver os últimos segundos de silêncio antes da primeira música. Barata em um set de bateria simples e pequeno seguia com um olhar sereno. João, mais sorumbático, aguardava calado bem à minha frente. Apenas o pedestal do seu microfone separava meu casaco do cabelo dele que cobria qualquer expressão facial possível naquele momento.
Num lapso de atenção da minha parte, a primeira música começou como uma porrada nos amplificadores. Qualquer ouvido menos acostumado com as notas dissonantes na guitarra, a frequência incansável bumbo-caixa e os gritos guturais, chamaria aquilo de barulho. O curioso é que em uma questão de segundos, meu corpo se silenciou. O contraste entre a agressividade que ondulava com traços até carinhosos com as pausas dramáticas, dando um respiro para os compassos mais bravos, provocaram em mim um transe sob uso apenas de uma garrafa de kombucha de gengibre.
Minha ansiedade crescia pela próxima música. Saquei dois chocolates que derretiam no meu bolso e, sem mover mais do que os braços e o cotovelo, mastiguei cada um instigada pelos sentimentos que todo aquele som me provocava. Tentava entender a nuance, os padrões, as referências. Quanto mais me esforçava, mais distante me sentia de qualquer previsibilidade artística.
Quando eu parecia finalmente colocar dois pés no chão, veio o silêncio. Agora absoluto. Não parecia ter passado mais do que 30 minutos de show. De fato, não estávamos nem há uma hora ali. Aplausos foram se dissipando em conversas e todos seguiram normais para suas próximas bebidas ou em destino às suas casas naquela noite de quinta-feira.
Eu não. Não consegui sair. Desci para o bar e fiquei em uma onda catatônica. Segurava meu boné comprado antes do show buscando explicações. Até que o Barata refez sua metamorfose e voltou a ser um vendedor de merchandise da sua banda. Fui até ele. Comecei comprando mais um boné. E uma camiseta. Talvez eu quisesse levar todos os produtos para estudar a trama de cada linha de algodão. Estava perturbada.
Como um ato quase agressivo, perguntei a ele: "o que foi isso? O que foi isso que vocês fizeram?". Ele ria feito vendedor de bala tentando te convencer de levar mais uma caixa. Ficamos quase a mesma duração do show em uma sessão de terapia. Eu, a paciente. O desabafo veio para os meus amigos que ouviam por toda madrugada meus anseios por resposta.
Poucos dias depois, desembarco em Santo Andre para mais uma apresentação. Se eu contava com alguma pista, não veio. Ainda não sei explicar o que fazem os dois meninos. É literalmente um teste. Para nós. Uma abertura para algo novo na música que insiste em buscar aceitação reproduzindo à perfeição modelos de décadas passadas.
O Test não teme desafiar o convencional. Videoclipes sem som, discos com músicas que se entrelaçam em infinitas combinações e gravações em espaços públicos – cada iniciativa é uma rebelião contra as normas.
Apesar de sua extensa discografia e turnês ao redor do mundo, o Test mantém um desprezo saudável pelo modus operandi da indústria da música. Eles rejeitaram grandes propostas, favorecendo a autenticidade em vez da conformidade.
Agora, com mais de uma década de existência, o Test não mostra sinais de desaceleração. Com o lançamento de "Disco Normal" em 2023, eles estão prontos para embarcar em outra intensa série de shows, mantendo sua filosofia única e, claro, seu espírito experimental.
Na era digital, onde a saturação musical é palpável, o Test serve como um lembrete revigorante: a música não é apenas sobre notas e harmonias, é também sobre histórias, contrastes e, acima de tudo: insônia, ansiedade e paz.
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