ENTREVISTA EXCLUSIVA I'M A BEAT
As certidões de nascimento quase se confundem nas datas. Jean Moura nasceu em 1989, quando a banda Raimundos mal completava um ano da sua primeira apresentação na casa do também músico Gabriel Thomaz, na cidade de Brasília/DF. Mas foi em Santo André/SP que Vanderlei e Margarita se emocionavam com nascimento do filho Jean que se tornaria o baixista dos Raimundos quase 34 depois.
Margarita, uma mulher chilena que se mudou para o Brasil com a família no período da ditadura do seu país conheceu Vanderlei quando passaram a morar na mesma rua. O casal logo cedo percebeu que o filho Jean não iria tomar jeito nos estudos. Enquanto as notas da escola insistiam em não ser suficientes para avançar de ano, eram as notas da bateria que pareciam levar aquela criança para algum lugar.
Quando ele completou sete anos, os pais cometeram a "cagada" — como classificou Jean dando risada — de comprar uma bateria para ele. Nada de tambores de plástico. O instrumento já tinha potência para fazer com que os vizinhos chamassem a polícia algumas vezes para o menino que passava horas tirando músicas com as baquetas. Entre cadernos rabiscados com logotipos de bandas e as frequentes broncas da mãe pelas notas baixas, crescia o sonho: ser como as estrelas do rock que ele via nas fitas VHS.
Mas foi o tio materno Christian, que ainda era adolescente naquela época, quem contaminou de vez seus planos futuros. Fã de Queen, Beatles e Iron Maiden, o tio roqueiro já tinha uma banda que levava seu sobrinho para acompanhar os ensaios. Apesar de professor, nunca deu aulas formais para o Jean. O simples convívio foi sua maior escola de música.
Quando ainda estava na quinta série, seguiu de vez os passos do tio quando se tornou o baterista da banda Knights. Tocaram na Fraternidade Motoclube, local que era um palco clássico para os músicos do bairro Parque Novo Oratório, em Santo André, por volta dos anos 2000.
Jean ainda se lembra das apresentações da banda Sucata por lá, que usavam até latas de azeite em vez de pedal de bumbo para criar seus instrumentos que, frequentemente, eram quase destruídos ao final do show com a euforia dos seus próprios músicos. Foram eles também que introduziram aos olhos do Jean instrumentos como violão de 12 cordas que estimularam ainda mais sua criatividade para o universo complexo da música.
Ele assume: "não foi um adolescente fácil". Com fama de chefinho, não economizava nas palavras e atitudes para tentar tirar dos seus colegas o melhor som nas bandas pelas quais passou. Carregando até bumbo nas costas em micro-ônibus urbano, começou sem quase nenhuma estrutura que pudesse trazer conforto. O pouco que tinha era sua bateria que, aos poucos, ele mesmo a destruía com suas baquetadas nervosas. Prato de condução virava splash na sua mão de tanto comer as bordas com as baquetas manuseadas pelas suas mãos nada gentis. A bateria já estava se tornando uma brincadeira cada demais para se manter.
Quem decidiu mudar de instrumento foi o seu bolso. Parecia muito mais econômico assumir de vez a guitarra que era do seu tio Christian e migrar para os instrumentos de corda. Aos 23, começou a trabalhar em um estúdio para apoiar os ensaios que aconteciam por lá. Além dos riffs na guitarra, Jean foi aprendendo a lidar com equipamentos. Sistemas de voz, mesas de som, cabeçotes de Marshall e aparelhos que ele passou a criar alguma intimidade.
Mesmo com o seu trabalho no estúdio e as aulas de guitarra que começou a dar, a grana não parecia suficiente. Até que teve a ideia de montar a Hell's Luthieria para reformar e cuidar de instrumentos, após aprender a arte fazendo a manutenção da sua própria guitarra.
Seus conhecimentos somados garantiram uma vaga para trabalhar na banda de hardcore Worst. Viajaram várias cidades no País até que um dia o tour manager e drum tech Rafa Galbes fez um trabalho para a banda, quem acabou o levando a fazer outros trabalhos com Candlemass e outros artistas gringos.
Em 2016, fez turnê com a Torture Squad, quando teve o baterista Amilcar Christófaro como inspiração para olhar para a profissão no meio da música como algo ainda mais profissionalizado e sério. Foi com eles que se sentiu finalmente à vontade para se afirmar como um guitar tech para valer.
Sua história até então alternava como roadie e técnico que salvava músicos de diversas bandas. Apesar da sua personalidade complicada e nada perfeitinha, seguia crescendo sua carreira pela dedicação e resiliência para fazer sempre seu melhor profissionalmente.
Foi enquanto trabalhava em um ensaio sem muita pretensão, conheceu Fernando Lima que o perguntou: "O que você faz, Jean? Vira e mexe meu pai precisa de pessoas que manjam coisas tipo o que você faz no trabalho dele." O que ele não sabia era que o tal pai era Anísio Lima, produtor dos Raimundos.
A profecia de Fernando se concretizou. Em um momento de desfalque nos Raimundos, Anísio lembrou-se do comentário do filho sobre "aquele cara" e decidiu fazer a ligação.
— Eu trabalho com os Raimundos — disse Anísio a Jean em uma ligação sem aviso prévio.
— Tipo... Raimundos Cover?
— Não, os Raimundos. De verdade. "Como diabos esse cara conseguiu meu número?", se perguntou Jean surpreso. O convite era para o último show de uma turnê daquele ano na Cervejaria Bamberg. Quando o valor do cachê foi revelado, os olhos brilharam. O entusiasmo não era apenas pelo dinheiro, mas pela possibilidade de trabalhar com uma banda que ele tanto respeitava.
Quando chegou ao seu primeiro trabalho com eles, só conseguia falar "vish!". Aquele ônibus preto imponente apresentou pra ele uma realidade de produção até então inédita para ele. Enquanto trocava uma ideia com o motorista, chegou o caminhão de equipamentos, cena que o levou mais alguns minutos para absorver. Pela primeira vez, viu roadies uniformizados entre seus colegas de trabalho. Encarou o caminhão e as dezenas de cases e disparou: "Deus me ajude, véi".
Desde então, já são 7 anos de história. Sendo os últimos anos como profissional exclusivo dos Raimundos. Dias de glória e dias de confusão. Ele confessa dando risada que a jornada de aprendizado foi longa, mas divertida. Guitarra afinada em tom errado, pilhas de transmissor trocadas em cima da hora, alguns atrasos e "uma pá de cagada", como ele define, foram suavizadas pela paciência que o time teve com ele e toda a amizade formada.
A "graxa", como ele se refere ao time de técnicos da banda, é muito amiga dos músicos nos Raimundos. Com Jean não foi diferente. Uma dessas amizades foi com o próprio Canisso, baixista da banda desde a sua primeira formação, que faleceu em março de 2023 enquanto estava em turnê, marcando como um dos dias mais tristes para o calendário da música nacional.
Foi Canisso quem introduziu o baixo de vez na vida de Jean. Era ele quem fazia passagem de som junto com o próprio baixista, enquanto atuava como roadie dele e do Marquim, guitarrista. E dele também foi aprendiz de detalhes do instrumento como timbre e equipamentos. Numa cirurgia de hérnia a que Canisso precisou se submeter, convidou Jean para ser seu sub. Fez dois shows e devolveu o posto para seu titular sem qualquer pretensão ou sonho de ocupá-lo um dia.
O pior dia da sua vida e tornou o início da sua história no Raimundos em cima dos palcos. A morte inesperada de Canisso não encerrou a história da banda. "A história dele faz parte da história do rock. Isso não tem fim", definiu Jean determinado em cumprir esse papel desafiador para quem esteve como amigo e aprendiz por tantos anos. Um dos receios seria a recepção dos fãs que, ao contrário, têm dado um suporte incondicional nestes últimos seis meses, desde quando assumiu o baixo dos Raimundos.
Entretanto, não foi apenas a música que moldou Jean. Durante a pandemia, ele enfrentou os sentimentos mais sombrios, potencializados pelo uso de remédios com substâncias que colocavam sua mente em um estágio de depressão e falta de perspectiva. Foi o Muay Thai que trouxe equilíbrio à sua vida. Quando iniciou os treinos, trocou uma rotina de pouco autocuidado por uma atenção maior à saúde. Considerou trabalhar como personal fight, atuando como professor de luta.
Sua carreira acabou se convergindo de forma integral à banda. Aquele menino marrento deu lugar ao "cara mais legal do mundo", como ele se descreveu em tom de brincadeira. A estrada e os episódios da vida o ensinaram a ser mais carinhoso e empático não só com o mundo, mas também com ele mesmo. Quando pergunto onde ele pretende estar profissionalmente aos 70 anos, ele responde com um olhar decidido: "nos Raimundos, se a vida permitir".
"Independente de onde você esteja, no alto ou no baixo [brinca com a palavra], os seus pés sempre têm que estar no chão", encerra Jean. Para ele, subir no palco não é subir à cabeça. Fazer música é respeitar o momento, seja ele qual for. Não importa o tamanho do público, sua posição ou banda. Manter a energia positiva e equilíbrio das emoções é seu segredo para seguir numa trajetória constante e de respeito à sua arte.
Esse cara merece tudo dé bom #vivaORockJean